terça-feira, 27 de abril de 2010

Miguelti, Parte 5

- Hblaaarh!
Miguelti foi subitamente acordado do torpor com uma forte queda no chão. O corredor de onde vinha, que estava atrás de si, enquanto olhava em volta e tentava, de alguma forma, levantar-se (o peito a doer-lhe tanto! Tinha caído mesmo de peito no chão de pedra) parecia-lhe, ao girar a cabeça espantado e freneticamente para todos os lados, estranhamente vertical: como se de um poço se tratasse, como se de um poço tivesse caído.
Bastante inclinado, ah – mão ao dorso – bastante inclinado, pareceu resmungar. Há quanto tempo estaria a andar? Teria perdido a noção do tempo, para não notar sequer que a mina começava a ficar, no chão e junto às paredes, cheia de utensílios variados e tralha, em montes de tamanho variável? Para trás voltar não fazia sentido. De qualquer modo, decidiu: não iria voltar para trás. Tinha estado meio desorientado, tanto que até chegara a tropeçar, como se adormecido tivesse por momentos ficado, mas agora sentia-se outra vez com a cabeça clara, limpa, (em) ar total. E – o que era toda aquela quinquilharia? Numa das paredes estava escrito “é um pião: no vácuo, vive indefinidamente; não se desagrega” mais à frente escrito numa tinta rosada “perdão, mas provavelmente errado”. Tudo o que poderia imaginar continha exemplares naquela parte da mina, para trás, no entanto, toda despida de coisas. E aquilo lá ao fundo em eco a vir da escuridão em formato ligeiramente arritmado e rápido, algo circular parecerão ser passos; e a mina não parecia ainda ameaçadora. Enquanto recomeçava, mais uma vez, a limpar o pó da capa, das calças e da jaqueta, do sacola e das botas, etc, Miguelti recomeçou a continuar a andar, indeciso em render-se ao desinteresse de remexer nas centenas de objectos que estavam no chão da mina e continuar a andar para encontrar o Professor e o outro idiota, na necessidade de encontrar uma saída (ou reavaliarem o plano que os tinha levado até ali, desta vez, com a reafirmação veemente de Miguelti, pelo menos, de estar a par de tudo), ou deixar que o vício de assimilar conhecimento de todo o tipo o vencesse. Para onde iria, sabia e não sabia; só havia um caminho, convenientemente mal iluminado lá para a frente. O corredor continuava com luz própria – desta vez eram tochas – e o limiar de escuridão era mais curto ainda, que Vivelti apenas consideraria como remotamente estranho; e encostadas ás paredes, ou pingando para o chão, os montes de tralha iam persistindo, revelando-se enquanto caminhava. Bonecas e cenas. Utensílios para a cozinha e sucata. Caixas, algumas abertas com livros, outras com mais tralha, algumas mais pequenas com discos transparentes incrustadas, pedaços de metal deformado e material de laboratório partido, artefactos e objectos de navegação, comandos, estatuetas, transístores. Ia andando lentamente pelo corredor, olhando em volta. Cinquenta, cento e cinquenta metros. Miguelti começava a estranhar,
Mas ainda antes de reflectir que fazer com tudo o que se deparava à sua frente na sua caminhada, ou pensar em usar algo do que ali estava para o ajudar a sair dali o ecoar arritmado das batidas aproximava-se, e cada vez mais perto e mais lato, (e) não enganava; eram mesmo passos. Miguelti ficou a meio do caminho, estúpido ou certo demais para ter medo.
Saiu um tipo da escuridão de calças e camisola larga rasgadas (e na parte de cima Miguelti encontrou alguma confusão):
Espera, o que é isto, de repente há algum medo na cara do rapaz –
- Quem és tu?, Quem és tu? – Perguntou o tipo desorientado agarrando-o
Miguelti agarrou-se à correia da sacola em reflexo enquanto o homem de olhos esbugalhados o agarrava pelos ombros – Chamo-me Miguelti e vim cá com os meus amigos explorar esta mina, no início desta noite haaaaa você quem é!
- Tupac – respondeu-lhe o tipo, olhando em volta para as paredes,
- Tupac?
Não largando as mãos dos ombros do rapaz, e depois os seus olhos encontraram-se de novo com os dele – haaaaaa, haaa –
Os olhos de Miguelti teimavam em abrir-se mais naquilo que parecia ser, à primeira vista, um sinal de conforto enervante para o “Tupac” que o agarrava
- … – Era suposto eu não estar aqui ou ter morrido, ou já morri ou... vou morrer... – largou as mãos dos ombros do miúdo e voltou ao mesmo olhar desorientado, com Miguelti a iniciar uma atitude de franzir claramente o sobrolho. – Perdão, mas já morreu ou vai morrer? Portanto, depreendo que não devia estar vivo? Mas de onde é...?
Enquanto punha as mãos nos joelhos e começava a sentar-se no chão: “Desde que aqui estou que aprendi a identificar o… as diferentes ser e não ser, como que coisas à tua frente, realidades… e,”
Sobrolho franzido de Miguelti; poder-se-ia pensar que alguém numa situação normal já estaria a criar uma pequena nota de irritação em relação ao miúdo
- E – continuou – e tu claramente fazes parte de uma cena real que, que, eu sou mais familiar, se calhar similar à… – há quanto tempo é que aqui estás? Como é que entraste aqui?
Miguelti abriu a boca antes de falar, tentando perceber ate que ponto seria seguro dizer a um escravo mineiro o que estaria a fazer em, provavelmente, sua casa; mas a mina parecia ser mais do que isso. Começava, lentamente, a aperceber-se que (desde o incidente do carro) nada parecia ser bem o que aparentava. Talvez estivesse perdido de vez – e o preto à sua frente poderia ajudá-lo a sair dali – e encontrar Vivelti e o Professor.
- Eu e um amigo meu, mais o nosso Professor, entrámos nesta mina este início de noite. Estávamos a começar a descer por uma galeria, quando uma derrocada nos separou. Venho de lá de cima. Por acaso viu-os? Sabe se há alguma saída para fora da mina, ou era só aquela?
- No início da noite… – Tupac encostou-se a uma parede, de costas, deslizando para o chão, sentando-se à esquerda, ao lado de uma pilha de bisnagas de tinta usadas – quanto tempo já deve ter passado… quantos anos, quantos… cinquenta? Não, mais… de tempo real – ou até podemos não ter saído do sítio, e voltado atrás… mas para ti –
- Desculpe – cortou Miguelti, o nosso por agora protagonista já com uma nota pequena bem perceptível de pânico na voz – mas onde estamos? Quem é você?
O homem de trinta e muitos anos (parecia a Miguelti, que poucos negros tinha visto na vida) suspirou, tentando, vendo-se, encontrar ainda o poço seco de onde brotava a fonte da sua sanidade, bem nos confins do umbigo como prolongamento do cérebro, daí extraindo apenas uma gota preciosa que o permitiria continuar a aguentar-se.
- Chamo-me Tupac, já te tinha dito – Miguelti ouvia com atenção e os olhos muito abertos, com a expressão facial petrificada de pura atenção – sou um rapper… ou era, enfim, o que é indiferente porque, e nasci nos anos 50, e não sei bem como vim aqui parar. Esta é a segunda parte da vida, para mim, mas. A última coisa de que me lembro é de me terem dado uns tiros… já foi há muito tempo, e, estou aqui há anos, muitos anos. Anos – fechou os olhos –. “Subjectivamente” e “objectivamente”, estás a ver, porque isso é certo, e há já duas coisas que precisas de saber – olhou para ele, enquanto verificava que a boca de Miguelti ia rebentar se não a abrisse e não falasse, tentando compreender tudo o que lhe dizia; estava já tão farto e cansado,, como iria explicar tudo ao garoto?, pensou. – Bom, meu, a primeira… a primeira é de que, prazer desde já em conhecer-te… e tudo, porque vais ficar aqui muito tempo. O teu amigo que – Ou morres logo se não lutares ou perceberes onde estás isso é-me indiferente. Eu já lhe disse também. A segunda, “Segunda”, murmurou Miguelti, enquanto Tupac continuava – A segunda – continuou Tupac – é a de que esta mina é fodida. Digo mina – ela é o que é, mas não uma mina em, enfim tens é que saber que esta merda não é um sítio, e agora temos de nos por a andar porque estamos à demasiado tempo parados neste lugar e se há coisa que me acagaça é mudança forçada do status quo, portanto vamos embora
- Espere! – Começou Miguelti, agora verdadeiramente assustado, começando a ver, um pouco surpreendido, junto dele, algumas ramificações invisíveis a mais – espere espere explique-me, para onde vamos o que –
- Segue-me – respondeu Tupac, andando depressa.
- O senhor disse – continuou Miguelti, andando atrás dele, tentando fazer sentido de toda a informação que acabara de receber – se o senhor disse que até haaaagora nunca saiu daqui, e já está aqui há muitos anos e, mas o senhor cinquenta anos ou mais não vejo como é que é possível – e, acelerando o passo, tentando explicar-se o melhor possível – se o senhor disse que esse tempo todo está aqui nunca saiu, porque é que ainda – enlouqueceu, qual é o tamanho da mina? Porque é que continua a tentar encontrar uma saída? Ou não há mesmo saída e?
- Porque a mina nunca me disse ou nunca me mostrou que não há saída. Ela tem certos lugares específicos por onde passei muitas vezes, mas nunca encontrei uma prova concreta de que houvesse um fim a estes corredores e paisagens. Daqui para a Piscina da fénix, passando pela Casa do Lago, até aos ramos desviados, se calhar até voltarmos a encontrar o teu amigo por quem passei à bocado –
- Ha? Que –
- Primeiro – disse Tupac parando de repente, com um olhar sombrio, olhando por cima do ombro para Miguelti – vamos ter que nos preparar para a chegada da Hetero-esfinge.


Parte 6